Partindo

já que estamos falando de viagens:

O apertar da buzina evidenciava a chegada. As janelas lotadas permaneciam atentas ao rápido movimento. Eram várias as pessoas que ali estavam. Todas apinhadas para aquele desfile mordaz. As motocicletas passavam cuspindo no chão, enquanto eu ficava a observar as tatuagens, os capacetes e os cabelos longos jogados para o vento. Um grito que ocupava a sala me mandava entrar. Eu tinha que sair de lá, fechar a janela. E deixar para trás o desejo por tudo aquilo que nunca seria conquistado. Mas as pernas não obedeciam.

Era sempre ao anoitecer. Antes da missa. Eu os esperava chegar com o vestido desajustado ao corpo. Sem curvas, sem sexo, sem nada. Embora folgado, me apertando a liberdade. Por vezes me achava imaginando o que pensariam eles se me encontrassem em tamanha incompatibilidade. Tinha vontade de abrir o armário, experimentar novas cores, encontrar o tamanho certo. Algumas vezes quase cheguei a fazê-lo, mas minha coragem cativa me amaciava. Eu continuava igual e eles nunca chegavam. Até um dia de indisposição.

Neste dia em questão, meus pais, o velho e a velha, se preparavam para alguma festa da paróquia. Eu fiquei na cama, enquanto encenava tonturas, espasmos, titubeações. Eles se voluntariaram a ficar comigo, mas eu teimei em que fossem. E eles foram.

Assim que o bairro todo saiu, sentei a soleira da porta, abraçada aos joelhos. Ao meu lado, a pequena mochila verde-musgo dividia a apreensão. Ali, em mim, vestidos não cabiam. Eu era corpo, era cor e cabelo amarrado. Pela primeira vez era mulher. Mulher como aquelas que se deixam arrastar pela estrada, que se entregam ao vento impetuoso. Que se perdem rápidas no fim da rua ao entardecer. Eu era coragem e decisão.

Aquela era uma das poucas vezes que os estrondos das motocicletas não tinham platéia a sua espera. Apenas eu. O sol começava a baixar. Amarrei os cadarços, coloquei a mochila nas costas e me levantei. Em minhas mãos suadas pelo nervosismo, estava meu passaporte para a liberdade. Ticket sem volta. As motocicletas se aproximavam cuspindo pelo chão.

(A/C Ferreira)

Um comentário:

Lidi! disse...

Que lindo manitcha, arrasou Clarinha! =)

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